Beijo de Mãe | Afonso Reis Cabral



Depois de tudo, de todos os anos e de todas as vicissitudes da vida, ainda conservava a caixa, memória e espaço inócuo, estática simplesmente no tempo. Setenta e muitos anos haviam já passado! O tempo tinha exercido sobre ele o efeito que faz uma gota de água repetidamente numa rocha — e ele não tinha a porosidade dura da pedra… 
Pois os lustros foram passando, lentamente, e, com o decorrer do tempo, cada vez mais alheio, a vida continuou. Mais algum pouco que meio século e o momento era exacto: sobrara apenas, e já muito, a caixa com o ás de copas gravado no metal da tampa. Mais que envelhecido, apodrecido, mas tendo em si a nostalgia da vida, pegava, trémulo, na caixa selada por fita-cola preta.
 A sua mulher, vaga memória, permanecia sempre nos seus gestos como parte de si, mas desapercebida. Os filhos, todos marcados pela morte, estavam enterrados no fundo da sua alma. Não estavam mortos para ele, mas sim adormecidos nos confins da eternidade. 
Um dia pedira a sua mãe afincadamente que lhe desse um beijo no tempo. A mãe, surpreendida, dera-lhe um beijo na testa, um beijo no presente. Não, não! Queria um beijo daqui a muitos anos, quando a sua mãe já não lho pudesse fisicamente dar. 
—Mãe, dá-me um beijo no tempo, daqui a muitos anos! Mãe, dás? 
Um dia depois, lá se decidiu e deu um beijo no filho do futuro, fechando a caixa logo de seguida para que este não se perdesse no ar, no tempo do presente. Era assim que o seu filho desejava.  
Esse beijo na caixa fora dado com a mesma convicção com que todos os dias, antes de o filho adormecer, visitava o seu leito e lhe marcava a testa com esse cunho do amor. Ele, envolto em lençóis, dormia toda a noite com a presença da mãe na testa, embalando-o como se ele ainda fosse um bebé. 
Os anos trataram de fazer com que a mãe não pudesse fisicamente dar mais nenhum beijo. Ele, por sua vez, dera muitos beijos aos seus filhos, embalando-os, porventura, como se eles fossem ainda bebés, mas nunca com a mesma verdade de amor com que sua mãe lhe dava, há já muito tempo, beijos no leito. 
Nesse dia estava sozinho, e já parco de vida, esperando a morte. Era de noite e só uma lâmpada luzia em toda a casa, envolta numa camada de pó. O filho, que já fora pai e marido e que, agora, não era nada, sentou-se na cama e tirou vagarosamente os chinelos, alinhando-os. Depois, enrolando-se, deitou-se em lençóis, como se fosse um bebé. A caixa lá estava. Com as suas mãos finas, onde se viam todas as veias, raspou a fita-cola preta para a arrancar com lentidão. 
Recebeu o beijo de sua mãe. 
No dia seguinte, quando a empregada entrou no quarto, encontrou-o morto ao lado de uma caixa aberta, mas com um sorriso de quem está só a dormir, embalado pelo beijo de sua mãe. 

Kommentare

  1. Desconhecia e comovi-me muito que mal vejo as teclas. Obrigada pela partilha!
    Beijos e um bom dia da mãe

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    1. Teresa Palmira Hoffbauer5/05/2024

      O autor deste maravilhoso conto é descendente do escritor Eça de Queiroz.
      Afonso Reis Cabral é licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade Nova de Lisboa, instituição onde obteve também um mestrado em Estudos Portugueses.

      Beijos para ti, Fatyly, e um dia feliz 🌷

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  2. Que triste e comovente!

    Abraço de mãe portuguesa

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    1. Teresa Palmira Hoffbauer5/05/2024

      Um conto literário primoroso e suave, que me acompanha no dia da mãe.
      Abraço para todas as mães portuguesas.
      Um abraço muitíssimo especial para a minha mãe 🌷

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  3. Rogério V. Pereira5/05/2024

    Demasiado triste
    para um dia que se quer festivo

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    1. Teresa Palmira Hoffbauer5/05/2024

      O beijo é uma metáfora para expressar um amor que se afirma em cada momento.
      Um conto maravilhoso que emociona os espíritos mais esclarecidos.

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  4. Este texto é mesmo maravilhoso, Teresa. Triste, sem dúvida, mas belíssimo.
    Todos partiremos um dia mas quantos de nós terão a sorte de morrer assim, sorrindo, tocados pelo sopro de um beijo intemporal?

    Obrigada e outro abraço!

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    1. Teresa Palmira Hoffbauer5/05/2024

      O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral, foi o romance vencedor do Prémio LeYa 2014.
      O dia das mães portuguesas está quase a terminar.
      No próximo domingo é o dia das mães alemãs 🌹
      Abraço, Maria João, desejando-lhe uma boa noite.

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  5. Videochamada com a minha mãe.
    No próximo domingo será a celebração com as mães de Macau.
    Boa semana

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    1. Como não dou grande importância ao Dia da Mãe, esquecia-me quase sempre de telefonar à minha mãe no primeiro domingo de Maio, dia das mães portuguesas, e telefonava-lhe no segundo domingo de Maio, dia das mães alemãs, o que a irritava profundamente.

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  6. Não conheço o autor, mas quem assim escreve é um bom escritor, já que este conto é uma excelente obra de arte literária.
    Obrigado pela partilha.
    Boa semana.
    Beijo fora da caixa...

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    1. Teresa Palmira Hoffbauer5/06/2024

      Um beijo cheio de simbolismo, esse guardado assim numa pequena caixa.
      Afonso Reis Cabral nasceu em Lisboa em 1990 e cresceu no Porto.
      Cidade invicta, mas pequena.
      Frequentava ainda o liceu, quando o conheci.
      Jovem, bonito e um fantástico bailarino.
      É o quinto de seis irmãos.
      Escreve desde os 9 anos.
      Eu escrevo desde os oito anos.
      Falta-me o talento, porque não sou descendente de Eça de Queiroz.
      Agradeço e retribuo o beijo fora da caixa 🌷

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  7. Viva, Teresa!
    Magnifica história partilhaste num dia tão especial.
    (Cheguei a tempo, porque dia da mãe são todos os dias da vida de uma filha.)
    Há muito que não leio Afonso Reis Cabral, desconheça até se ele tem publicado.
    Chegaste a ler o segundo livro dele, "Pão de açúcar"?
    Espreita no Rol de Leituras (recordas?).
    Beijo, boa semana.
    https://roldeleituras.blogspot.com/2019/05/pao-de-acucar-afonso-reis-cabral.html

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