Percurso Literário Singular de Maria Ondina Braga (excerto) || José Cândido de Oliveira Martins


(.) Maria Ondina Braga (13 de janeiro de 1932* — 14 de março de 2003) foi uma mulher e escritora discreta e solitária que, após uma vida de deambulação cosmopolita, se recolhe à sua cidade de Braga, nos derradeiros anos de vida, sendo homenageada publicamente em 1990, sendo-lhe também atribuída a Medalha de Ouro da cidade em 1994, além de ser objeto de uma exposição bibliográfica por iniciativa da Biblioteca Pública de Braga, em finais de 1995. O seu desaparecimento mereceu um sentido voto de pesar por parte da Assembleia da República, homenageando assim uma escritora que viveu e viajou livremente, que ensinou e traduziu, e, sobretudo, que escreveu intensa e originalmente.

Nascida em Braga, onde concluiu os estudos secundários, Maria Ondina continua, já como jovem mulher, a sua formação na Royal Society of Arts (Inglaterra) e na Alliance Française (França). Em 1960, trabalha como professora do ensino secundário em Angola, partindo no ano seguinte para Goa. Porém, a invasão do território português pelas tropas indianas leva-a para Macau, a cidade no estuário do rio das Pérolas e última herança do império colonial português, onde continua a exercer funções docentes no ensino particular. E em 1964, fixa residência em Lisboa, voltando mais tarde ao Oriente (1982), como professora convidada da Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim.

Sem cairmos em biografismos primários, este percurso biográfico condicionou enormemente e de forma indelével a sua escrita, quer ao nível estilístico e compositivo, quer no domínio das linhas temáticas dominantes e a respetiva mundividência geral Biografia e texto interpenetram-se - para retomar um subtítulo seu, pode afirmar-se que em muita da sua criação literária elabora-se um circuito que vai "da biografia no texto ao texto da biografia".

Com efeito, ao estudar e trabalhar em Inglaterra e em França; e ao lecionar Inglês e Português em Angola, Goa, Macau e Pequim, Maria Ondina traçou um percurso de vida que modelou necessariamente a obra criada. Este itinerário de vida tão diverso, incluindo outras cidades e territórios (como Lisboa), projeta-se nas obras através de uma experiência intensamente vivida; e reflete-se na trajetória plural de muitas das suas personagens, que vão deambulando de lugar em lugar, numa assinalável itinerância, passível de leituras também elas plurais.

Necessariamente, esse rico capital de experiências e de culturas imprime à sua escrita um desenho ímpar no panorama da literatura portuguesa da segunda metade do séc. XX, quer na pintura dos ambientes, quer na composição de personagens, quer na caracterização de costumes e de tradições, definindo figuras, atmosferas e um modus vivendi plural e cosmopolita. Como assinalado por Paula Morão (1995: 745), no universo de Maria Ondina, a itinerância é a forma de uma personagem se contar a si mesma "ao narrar o mundo". De uma escritora admirada, Gabriela Mistral, escreverá a autora: "(...) há no seu temperamento outra característica: a mobilidade. Herança paterna? Não cria raízes em nenhum lugar, muda-se constantemente". Em comum com essa e outras escritoras da sua predileção, também Maria Ondina Braga tem "experiência do mundo".

Curiosamente, ou não, nessas "vagabundagens pelo mundo" (expressão de Estátua de Sal) sobressai a ausência do exotismo tradicional ou de uma visão mitificada, eurocêntrica e "familiar" do Oriente (cf. Said, 2004). Maria Ondina tem plena consciência da "construção colonial do cultural", típica de uma visão imperialista do Ocidente (Bhabha, 2007: 188). Em todo o caso, isso não impede o poder de sedução das finas e coloridas aguarelas de muitas das suas páginas. Por tudo isto, ao prefaciar Estátua de Sal, Tomaz de Figueiredo refere que, após tantas viagens, a escritora tem "a memória a latejar-lhe de recordações", com histórias e imagens onde pulula "o mundo, várias gentes e várias almas, várias crenças, vários amores".

No romance mencionado afirma-se expressamente essa fecunda errância: "Palmilhei capitais europeias. Sonhei nas terras úberes de África os mais puros, os mais ardentes sonhos telúricos. Nasci numa cidade pequena com pedras do tempo dos romanos e Nossas Senhoras de todos os nomes. E não posso esque-cer Paris - a beleza, a grandeza, a sedução espiritual de Paris. Tenho de lembrar o perfil dos monumentos de Londres por entre os véus de nevoeiro ou o chovisco gelado. Necessito naturalmente de confrontar Angola com Macau para saber que há vida e saber que há morte. Mas, acima de tudo, desejo recordar a minha terra, as pessoas e os lugares que amei, outros passos...".

As peregrinações de Maria Ondina Braga aproximam-na, aliás, da condição portuguesa do viajante cosmopolita e, sobretudo, de um rico filão de escritores da literatura nacional, cuja errância os levou a diferentes paragens do Oriente - de Luís de Camões, Diogo do Couto, Fernão Mendes Pinto ou Bocage, a Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes ou Rui Cinatti. De Lisboa, Paris e Londres até Goa, Macau e Pequim —experimentando o depressivo e doentio "andaço" ou "pequinaço" —, Maria Ondina é um caso raro na literatura portuguesa contemporânea, de um original "saber de experiência feito".

De modo manifesto, a rica experiência do Oriente proporcionou a Maria Ondina um encontro ou visão do Outro e do Diverso, num incessante diálogo de culturas (cf. Graziani, 2009), que perpassa a sua escrita, através de um olhar diferente e particular. Essa aproximação ou tentativa de desvendamento desmonta naturalmente certo discurso colonialista; mas sobretudo faz emergir uma mundividência da alteridade, de reconhecimento da verdade e autenticidade do Outro, sem nunca o chegar a decifrar completamente.

Numa palavra, na pena desta escritora, a esfinge do Oriente é-nos desvelada numa circular dialética de mistério/revelação, o mesmo é dizer - num prazer continuado e inesgotável de experienciar o Diverso (cf. Besse, 2001). Em certo sentido, a obra de Maria Ondina reforça a presença do passado coletivo português à escala mundial, embora despida de ideias imperialistas, antes eivada de uma postura saudavelmente pós-colonial (cf. Ávila 1992; e Ribeiro & Ferreira, 2003). (.)

Maria Ondina Soares Fernandes Braga nasceu a 13 de Janeiro de 1922 e não 1932

 

Kommentare

  1. Rica experiência do Oriente diz-me muito.

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  2. A vagabundagem pelo mundo, as peregrinações pelo Império, esse rico capital de experiências e de culturas adquirido, creio serem condição favorável mas não necessária nem muito menos suficiente para se ver inscrito o seu nome no panorama da literatura portuguesa.

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    1. A vagabundagem não era necessária, todavia, enriqueceu a sua visão do mundo.
      Claro que era suficiente olhar o mundo da janela da cozinha, mas a sua obra literária era diferente.

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  3. Tal como Lourdes Castro, mais uma artista das Letras desconhecida !
    Teresa obrigado

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    1. Conheço tão mal a obra de Lourdes de Castro como a de René Bertholo, seu marido.
      Sabia sim, que o casal fundou — com outros artistas, entre eles Christo, Escada e João Vieira — o grupo KWY. Além de exposições, o grupo produziu até 1963 doze números da revista homónima.
      Depois de 25 anos a viver em Paris, regressou ao Funchal.

      Maria Ondina Braga foi uma outra portuguesa viajante cosmopolita.

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    2. René foi o primeiro marido. O actual era Manuel Zimbro, que foi meu colega na Escola de Artes.

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    3. Já sabia, que o Manuel Zimbro foi colega do Luís na Escola de Artes, ao ler a sua resposta ao comentário da Piedade Araújo Sol.

      Veja lá, a LOURDES CASTRO que vivia na sombra conseguiu dois maridos.
      Eu vivo na luz e, só consegui UM …

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  4. Conheço mal Maria Ondina Braga mas fiquei com vontade de aprofundar esse fraco conhecimento.

    Abraço

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    1. Partilho com ela essas „vagabundagens pelo mundo“ 🌎
      Ou, mais precisamente pela Europa.

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