Ensaio sobre a Lucidez – José Saramago



“Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze depois de fechar com violência o guarda-chuva empapado e despir uma gabardina que de pouco lhe havia servido durante o esbaforido trote de quarenta metros desde o lugar onde havia deixado o carro até à porta por onde, com o coração a saltar-lhe da boca, acabava de entrar. Espero não ter sido o último, disse para o secretário que o aguardava um pouco recolhido, a salvo das bátegas que, atiradas pelo vento, alagavam o chão. Ainda falta o seu suplente, mas estamos dentro do horário, tranquilizou o secretário, A chover desta maneira será uma autêntica proeza se cá chegarmos todos, disse o presidente enquanto passavam à sala onde se realizaria a votação. Cumprimentou primeiro os colegas da mesa que actuariam como escrutinadores, depois os delegados dos partidos e seus respectivos suplentes. Teve o cuidado de usar para todos as mesmas palavras, não deixando transparecer na cara nem no tom de voz quaisquer indícios que permitissem perceber as suas próprias inclinações políticas e ideológicas. Um presidente, mesmo de uma assembleia eleitoral tão comum como esta, deverá guiar-se em todas as situações pelo mais estrito sentido de independência, ou, por outras palavras, guardar as aparências.”

SINOPSE  
Num país indeterminado decorre, com toda a normalidade, um processo eleitoral. No final do dia, contados os votos, verifica-se que na capital cerca de 70% dos eleitores votaram em branco. Repetidas as eleições no domingo seguinte, o número de votos brancos ultrapassa os 80%.
Receoso e desconfiado, o governo, em vez de se interrogar sobre os motivos que terão os eleitores para votar em branco, decide desencadear uma vasta operação policial para descobrir qual o foco infeccioso que está a minar a sua base política e eliminá-lo. E é assim que se desencadeia um processo de rutura violenta entre o poder político e o povo, cujos interesses aquele deve supostamente servir e não afrontar.

É, ao mesmo tempo, uma fábula, uma sátira e uma tragédia. Quis que a fábula fosse uma sátira, mas não pude evitar que fosse também uma tragédia. Como a vida.”
José Saramago

Kommentare

  1. Saramago, possuidor de uma ideologia que fala no futuro ancorada no estudo do passado, sabia ao certo mostrar na sua obra o seu pensamento político. Ler e meditar sobre a sua obra tem ganhos de esclarecimento político que nos ajuda a compreender o mundo em que vivemos.

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    1. Sem dúvida que José Saramago, possuidor de uma ideologia que fala no futuro ancorada no estudo do passado, sabia ao certo mostrar na sua obra o seu pensamento político.

      Embora tenha lido a obra literária do nosso Nobel com todo o respeito e atenção, nunca influenciou as minhas convicções políticas e ideológicas e a compreender o mundo em que vivemos.
      Houve outros escritores e outras escritoras que me influenciaram muitíssimo mais.

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  2. Um homem muito controverso quanto a religião e política.

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    1. José Saramago era ateu e comunista, daí a controvérsia com os crentes e os anti-comunistas.

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  3. Espero que hoje, em Portugal, os cidadãos votem massivamente. O meu otimismo a falar mais alto! Eu já cumpri o meu dever! Bom domingo!

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    1. “Hoje é o dia em que decidimos o nosso futuro.
      Temos de votar com a razão, deixando em casa as emoções e a bílis.”

      Eduardo Pitta

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  4. Eu já votei!
    Este livro ainda não li.
    Gosto muito de José Saramago!

    Abraço

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    1. Embora “Ensaio sobre a Lucidez” não seja o melhor romance de José Saramago tem, evidentemente, os seus méritos. O maior é, sem dúvida, a desenvoltura narrativa — lê-se com uma fluidez policial. O epílogo implica algumas ambiguidades que exigem uma leitura de “Ensaio sobre a Cegueira”.

      Boas leituras e boas reflexões!!

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    2. Esse já li.
      Faz doer mas gostei muito.

      Abraço

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    3. A noite de ontem também me fez doer muitíssimo … embora eu não quisesse a vitória do Rui Rio.
      Quem acredita nas promessas do António Costa é tão ingénuo como eu, que acreditei nas sondagens portuguesas. As sondagens alemãs são precisas.

      Abraço e uma ótima semana 🍀

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    4. Portugal está bipolarizado.
      Também acreditei nas sondagens e fiquei espantada com a maioria absoluta.
      Se não querias a vitória de Rio e te doeu a vitória de Costa, está complicado.

      Abraço

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    5. Nas últimas eleições legislativas votei no PS, porque era o mal menor.
      Entretanto, compreendi a intenção maquiavélica do António Costa para se livrar da „geringonça“.
      O José Sócrates também conseguiu a maioria absoluta … e sabemos no que isso deu.

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  5. Já cumpri o meu dever cívico. Esperemos para ver.
    Nunca li nada de José Saramago. Penso eu. Lool 💙

    -
    Beijos, e um excelente Domingo.

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    1. Cidália já leu a resposta do Rogério ao seu comentário de ontem sobre as eleições legislativas portuguesas?! Ninguém precisa de ler José Saramago para cumprir o seu dever cívico.

      Agradeço e retribuo os beijos — quanto ao domingo vamos lá ver 🗳

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  6. Dever/direito cumprido.
    Tenho este livro na lista de desejos

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    1. O abstencionismo é o verdadeiro derrotado destas Legislativas 🗳
      Apoio a leitura desta obra, Andreia, mas só após a leitura do “Ensaio sobre a cegueira”.

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  7. Não sei se saberás já que António Costa conseguiu a maioria absoluta!!! Uma amiga acabou de me enviar uma mensagem agora! Grande Costa!! : )

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    1. Comecei a ver a RTP através da internet, mais tarde liguei a TV alemã para ver um filme policial nórdico — precisava de sangue 🩸 para engolir o sapo 🐸 embora ele não tenha ganho a maioria absoluta.

      Esta tarde estive a falar ao telefone com familiares portugueses todos convencidos na vitória do António Costa — eu, ingénua, nunca acreditei. AQUI 🇩🇪 as sondagens são muitíssimo precisas.

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    2. Não ouvi ou li as notícias. Foi o que uma amiga me disse, que António Costa tinha conseguido uma maioria absoluta e terminou a mensagem com “Grande Costa!”.

      Palpitei que ele iria ganhar, mas não com maioria absoluta.

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    3. Esta é a segunda maioria absoluta do PS desde o 25 de Abril.
      Absolutamente incrível — nunca mais acredito nas sondagens portuguesas.

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  8. Os portugueses foram às urnas e foram eloquentes.
    Dos resultados eleitorais mais fáceis de analisar.
    Boa semana

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    1. Uma vitória é uma vitória é uma vitória 🐸
      O triunfo de António Costa não se discute.
      Continua o seu reinado com a extrema-direita às costas, enquanto a esquerda perde em toda a linha
      e por culpa própria, segundo a opinião dos portugueses que votaram PS.

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  9. As sondagens é que não foram nada eloquentes...

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    1. „Tendo em conta o empate técnico das sondagens. Rui Rio vai reclamar uma vitória moral.“

      António Fernando Nabais

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  10. Só faltou o Rui Rio perder com a dignidade que aconselhava ao Costa.
    Aguardemos para ver o que aí vem. Na História o Costa já está.
    Sondagens? Tantos a fazê-las e tantos a errar.
    Beijo.
    (De Saramago, li melhor!)

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    1. Não tenho dúvidas que o António Costa e o PS repetem mais ou menos os mesmos erros de José Sócrates.
      Depois não se queixem … eu estou a 2000 quilómetros de distância.

      Não é o melhor livro de José Saramago — desta segunda vez, gostei mais de o ler.

      Beijo, desejando-te um mês de Fevereiro maravilhoso 🍀

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