A Corte do Norte, um filme de João Botelho de 2008, baseado no livro da Agustina Bessa-Luís



Sobre este filme li no Expresso: "O sonho erótico" de Inês Pedrosa

A beleza é aquilo que mais abate o nosso fingimento", escreveu Agustina Bessa-Luís, a páginas 24 de "Vale Abraão". A verdade deste aforismo demonstra-se, no seu máximo esplendor, no filme "A Corte do Norte", de João Botelho, adaptação do romance de Agustina com o mesmo título. Os grandes criadores escrevem uma única obra, em contínuo. Agustina, como João Botelho, trabalha sobre o desespero humano - a memória e a culpa, o amor e a ambição. Não há outro tema, aliás, neste mundo. Mas há, num e noutro destes dois criadores, uma ciência sísmica da natureza humana (chamem-lhe intuição, que parece pouco mas diz tudo), a que se acede através desse grau superior do conhecimento que é a sensibilidade erótica - um conhecimento perigoso, infinito, rebelde, que os tempos modernos tentam estancar através de códigos sucessivos de comportamento "saudável" e de uma ilusória libertação da sexualidade, concebida como uma espécie de feira popular da nudez e do orgasmo eficiente. Os filmes e os livros têm cada vez mais sexo e menos tensão erótica. É contra este regime de consumo de corpos e crise de almas que Agustina escreve e Botelho filma.
"A Corte do Norte" é um romance invulgar na obra de Agustina, que nunca escreveu um romance vulgar, porque é uma saga de mulheres, ao longo de um século. Desde a famosa "Sibila", sabemos que a força das mulheres é a marca do universo agustiniano, mas em geral a escritora envolve essa força (para a qual o nome mais correcto seria volúpia de viver) nos trâmites e consentimentos de sagas familiares. Que a família não é uma paisagem tão pacífica como queremos pensar, escreveu-o também Agustina inúmeras vezes. Por exemplo, na página 11 de "Eugénia e Silvina": "A família é uma forma de sequestro; e o sequestro desenvolve sonhos eróticos e de glória, devoções extáticas e rasgos patrióticos em geral susceptíveis de discordar do sólido julgamento das pessoas". Em "A Corte do Norte", observamos que esse sequestro desenvolve o fascínio pelo interdito, e que se pode morrer disso - nesse sentido, esta obra é ainda uma dolorosa dança familiar. Mas é, acima de tudo, um poema em prosa (e agora em filme) sobre a insubmissão das mulheres, ou sobre a sua extraordinária capacidade de ressurreição, sonho e aventura - podem chamar-lhe crueldade, porque estas mulheres são de uma ferocidade exemplar. João Botelho entendeu-o como ninguém, e o fulgor deste filme nasce desse entendimento cúmplice: as mulheres de "A Corte do Norte" são passionais e insolentes, ninguém as consegue travar. Arrastam a luz do mundo como uma cauda, porque trazem dentro delas a noite das noites, a escuridão perante a qual os homens tremem: o desejo.
Quem são essas mulheres? No princípio, a rameira Emília que se transforma em actriz e depois em Rosalina, baronesa do Mar, alter-ego da mítica Sissi, e de novo em actriz. O mistério sobre a identidade e o destino de Rosalina, a mais bela das belas, quase igual a Sissi mas ainda mais pronta a voar, assombrará as suas descendentes, igualmente belas - todas interpretadas, no filme, por uma inesquecível Ana Moreira. Tão belas são as protagonistas desta história que contagiam de riso e luxúria (ou do ciúme que é a sua versão faminta) todas as outras mulheres. Só os homens se distinguem uns dos outros, nas suas múltiplas formas de desistir da vida - e no filme, a desistência ganha sobretudo a forma de João de Barros, numa interpretação magnífica de Rogério Samora.
As mulheres de Agustina nunca são completamente bonitas - nem sequer a Ema de "Vale Abraão", que coxeava. São altivas, determinadas, exactas na resposta e incandescentes no olhar, inesquecíveis - mas nunca foram tão bonitas como Rosalina, porque "A Corte do Norte" é sobre o uso voluntário da beleza como uma forma de desocultação da verdade.
No estado actual da produção cinematográfica portuguesa, que se desculpa com o público para produzir os hamburgers de sexo e violência que julga que o povo quer (pobres hamburgers, que a América faz sempre melhor...), este filme surge como uma espécie de milagre. Estreia no próximo dia 19. Oxalá estrague as estatísticas aos talhantes de imagens, e prove que o público ainda sabe reconhecer a beleza autêntica, quando o deixam olhar para ela. Porque este filme de João Botelho é, relâmpago a relâmpago, uma tempestade de beleza.

Kommentare

  1. Quero ver se não perco. Normalmente gosto dos filmes do João Botelho.

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  2. Boa Noite Teresa

    A não perder. E gostei da associação de sensibilidade erótica a insubmissão.

    Hoje fui cotovia, mas estou a ficar corujinha, o meu raciocínio agora desperta ao começo da noite.

    Beijinhos
    Isabel

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