A vegetariana


Um bosque escuro. Sem ninguém. As folhas das árvores de pontas aguçadas, os meus pés feridos. Um lugar quase familiar, mas agora estou perdida. Assustada. Com frio. Do outro lado da ravina gelada, uma casa vermelha a lembrar um celeiro. Um tapete de palha que passa para lá da porta e o vento levanta. Enrolo-o e entro, e aqui dentro é isto: uma longa vara de bambu cheia de bocados de carne vermelha espetados, com o sangue ainda a escorrer. Tento passar para lá da carne, mas esta nunca mais acaba e não há saída. Já tenho sangue na boca e a roupa ensopada de sangue cola-se à pele. Acaba por aparecer uma saída. Corro, corro pelo vale até que, de repente, surge um bosque. Árvores cobertas de folhas, a luz verde da primavera. Famílias a fazerem piqueniques, crianças a correrem de um lado para o outro e aquele cheiro, aquele cheiro delicioso. Quase doloroso de tão vivido. O regato rumorejante, as pessoas a estenderem esteiras de junco para se sentarem, a petiscarem kimbap. Churrascos de carne por entre o barulho de pessoas a cantarem e a rirem de alegria. Mas o medo. As minhas roupas ainda molhadas de sangue. Esconde-te, esconde-te atrás das árvores. Põe-te de cócoras, não deixes que ninguém te veja. As minhas mãos sujas de sangue. Sangue na minha boca. Que tinha eu feito naquele celeiro?  Metera à força aquela massa crua vermelha dentro da boca, sentira-a a espinchar sobre as minhas gengivas e o céu da boca, pegajosa do sangue carmin. Mastigava algo que parecia tāo real, mas não poderia ser, nunca. O meu rosto, a expressão dos meus olhos... era, sem sombras de dúvida, o meu rosto, mas nunca o tinha visto. Ou não, não era o meu, mas parecia-me tão familiar... nada fazia sentido. Familiar e, apesar disso, não... aquela sensação tão nítida, estranha, horrivelmente sinistra.
HAH KANG in: A Vegetariana, pág. 16/17

Publicado originalmente em 2007, o romance conta a história trágica de Yeong-hye, uma mulher sul-coreana, normal no quotidiano até ao momento do sonho tenebroso que a impele a rejeitar comer carne e a leva ao ponto de desejar converter-se numa árvore.
Hoje é o dia do aniversário da minha amiga Christa, a minha prenda é o livro que ganhou em 2016 The Man Booker International Prize. Desejo que ela não o vá detestar. Imagino que não seja mesmo o tipo de história que agrade a todos, embora a critica não tenha poupado elogios a este romance e depois de o ler, compreendi porquê. 

Kommentare

  1. Parece interessante e já está traduzido para português

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    1. Editado pela D. Quixote em Setembro de 2016.
      Recomendo a leitura: uma história fascinante de beleza e horror.

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  2. Mais uma recomendação de leitura que registo com todo o agrado.
    Bfds

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    1. Recomendo, Pedro, mas prepar-se para ler algo estranho.

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  3. Esta obra faz parte do último pacote de livros que encomendei muito recentemente, tanto me têm falado dela que decidi experimentar.

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    1. Este romance é uma festa bizarra, erótica, tremenda.

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  4. É livro que não sei se vou ler. Há muitos livros bons de que não gosto. E a leitura, em mim, tem que ser prazeirosa. Must.

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    1. Ofereci este romance à minha amiga Christa porque ela é vegetariana e também não usa BH, porém, receio que ela não vá gostar da história nem da linguagem realista e dura da autora sul-coreana.

      Para mim, a leitura deste romance foi mesmo muito prazeirosa.

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  5. Um bocadinho tenebroso para o meu gosto :)

    Tive alguma dificuldade em perceber como se comentava, mas consegui :)

    Um beijinho


    O Toque do coração

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    1. Tenebrosos são apenas os sonhos de Yeong-hye.

      A segunda parte, contada a partir da perspectiva do cunhado, um artista na área de cinema e vídeo, tem um toque sensual e romântico.

      Resto de um bom domingo.

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