Norah Al Fayez: a mulher que entrou na história da Arábia Saudita

A decisão do rei Abdullah, pela primeira vez na história da Arábia Saudita, de chamar uma mulher para o Governo, é uma REVOLUÇÃO. Esperamos que esta mudança, traga liberdades a todas as mulheres, que vivem nesse país de trevas.

Li no Público
Uma semana antes de 14 de Fevereiro, Dia de São Valentim, os pregadores nas mesquitas da Arábia Saudita relembram aos fiéis que é “pecado” celebrar este mártir cristão, decapitado em 270 por realizar casamentos proibidos pelo imperador romano Cláudio II. A polícia religiosa ou Comissão (Hai’a) para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, não descansa enquanto não confiscar tudo o que de vermelho aparecer nas lojas, sejam rosas ou ursos de peluche. Comerciantes e clientes são multados, detidos e/ou chicoteados.
Este ano, porém, os temíveis "mutaww’in" tiveram uma inesperada prenda no Dia dos Namorados: o seu chefe foi demitido e uma mulher escolhida – pela primeira vez – para entrar no governo, assumindo uma pasta que pertencia ao “mais conservador e barbudo” zelota do reino.
Abdullah Bin Abdul Aziz, o octogenário monarca absoluto, surpreendeu os súbditos ao nomear Norah Al Fayez ministra-adjunta da Educação. Socióloga de 54 anos, formada nos Estados Unidos, ela será apenas responsável pelo “ensino de raparigas” (da pré-primária ao liceu), mas o simbolismo não esmorece. A sua tarefa era exclusiva de um departamento totalmente masculino – a maior promoção até agora era a supervisora ou reitora.
O assombro aumentou quando a foto da sorridente Norah Al Fayez foi publicada na primeira página do "Al Eqtisadiya" (versão saudita do "Financial Times"). De rosto maquilhado e descoberto, sem a "abaya" (túnica) negra que tapa o corpo da cabeça aos pés e apenas com um "hijab" (lenço) invulgarmente branco a ocultar o cabelo, ela aparece na mesma galeria do também recém-designado chefe da Hai’a, Abdul Aziz bin Humain.
Na primeira entrevista, ao diário árabe "Al Watan", Norah al-Fayez declarou-se indignada, “mas disposta a perdoar”, por terem ousado expor os seus bâton, blush, eyeliner e rímel sem autorização. “Fiquei profundamente perturbada, e nunca aceitaria que publicassem a minha foto em lado nenhum. Sou uma mulher saudita de Najd [a mais conservadora região, onde nasceu o rei e o fundador da doutrina wahabita] e uso o niqab [que apenas deixa ver os olhos]. Se tivesse instaurado um processo em tribunal, ganharia de certeza”, explicou. Disse ainda que não sabia onde o "Al Eqtisadiya" foi buscar a imagem mas, quando a contactámos (vários telefonemas, SMS, faxes e e-mails) para esta entrevista –, a primeira a um jornal ocidental – encaminhou-nos, sem qualquer restrição, para a mesma fonte: a edição digital de "Leaders of Saudi Arabia".
Oriunda de uma das mais importantes tribos pré-islâmicas, os Bani Tamin, antepassados dos Qurayash, do profeta Maomé, compreende-se que Norah Al Fayez não quisesse ofender a sua base. Essa inquietude desapareceu, aparentemente, quando as perguntas chegaram do estrangeiro e ela viu aqui a oportunidade de passar uma imagem “moderna” do berço de Osama bin Laden.

Um momento sublime
Foi no dia 12 de Fevereiro, dois dias antes do decreto real, que Norah Al Fayez recebeu um telefonema da corte a convidá-la para entrar na história de um país onde as mulheres têm sido privadas dos seus direitos básicos com base na rígida teologia wahabita. “Foi um momento sublime, a nível pessoal”, disse ao PÚBLICO, por correio electrónico. “É uma honra assumir as grandes responsabilidades que Sua Majestade me conferiu. (…) É, definitivamente, um passo no sentido de dar às mulheres papéis de relevo que elas saberão desempenhar nos círculos onde se tomam decisões.”
“A minha nomeação reflecte a visão de Sua Majestade de que a educação é uma prioridade estratégica da nossa nação, que as mulheres e os homens sauditas podem ajudar a transformar o sistema educativo, para desenvolver os recursos humanos e ir ao encontro das exigências de um mundo cada vez mais competitivo”, explicou. “De início, fiquei intrigada com a questão ‘porquê eu?’, mas agora estou mais ocupada em obter respostas para o que pode ser feito, e como fazê-lo da maneira mais correcta e positiva.”
“Acredito que qualquer problema pode ser resolvido se formos até às suas raízes, e não nos limitarmos a um conserto rápido, nem nos centrarmos nos efeitos secundários. Homens e mulheres podem obter soluções duradouras para grandes problemas – e um deles é o analfabetismo [13,7 por cento em 27 milhões de habitantes]”.
O combate ao analfabetismo não é, porém, a razão número um para mudar o sistema educativo, mas sim o controlo deste por extremistas religiosos, sobretudo os salafistas, que em 1979 (ano da revolução islâmica no Irão) tentaram derrubar a Casa de Saud com um ataque à Grande Mesquita de Meca. São os salafistas, defensores da "jihad" (guerra santa), os mentores da Al-Qaeda, a rede que atacou primeiro nos EUA, em 11 de Setembro de 2001 (15 dos 19 suicidas eram sauditas), e depois em Riad, a capital do reino, em 2003.
Se a nomeação de Norah Al Fayez é histórica, igualmente memorável é o afastamento de Ibrahim al-Gaith, o anterior chefe da polícia religiosa, cuja brutalidade e poderes começaram a ser questionados, em Março de 2002, quando um incêndio deflagrou numa escola e os bombeiros foram impedidos pelos "mutaww’in" de socorrer as 835 alunas e 35 professoras. “Não estavam vestidas de acordo com o código islâmico”, e 15 crianças morreram queimadas.
Em 2007, mais um escândalo abalou a imagem da Casa de Saud: o “crime de Qatif”, cidade no Leste, onde a mais odiada instituição do país – os seus agentes vagueiam pelas ruas ou espreitam às esquinas, munidos de varapaus – condenaram a prisão e 200 chicotadas uma adolescente vítima de violação.
Outra decisão notável do rei foi a demissão de Saleh al-Lihedan, presidente do Supremo Conselho de Justiça, o mais importante tribunal do reino –, que em Setembro de 2008 emitiu uma "fatwa" (édito) legalizando o assassínio de quem possuísse antenas parabólicas para captar “programas de conteúdo imoral”. Na era da Al Jazira (com sede no Qatar) e da Al Arabiya (estação de capitais sauditas), a condenação foi geral.

Mudar o futuro dos jovens
A leitura que Norah Al Fayez faz do decreto real de 14 de Fevereiro é a de que a Arábia Saudita “quer mudar o futuro dos seus jovens, homens e mulheres”. E acrescenta: “O mercado de trabalho está a enviar os sinais certos de que como deve funcionar em paralelo com as reformas educativas. Ao longo da minha carreira como directora-geral da secção feminina do IPA [Instituto de Administração Pública], adquiri um sólido conhecimento de quais as profissões que o mundo do trabalho precisa e não precisa. Além disso, todos sabem que a taxa de desemprego é maior entre as mulheres. Ora, se a integração das mulheres for um valor acrescentado, irá equilibrar a balança, e estabelecer uma nova dinâmica de igualdade e importância de género no mercado de trabalho.”
O desafio, adianta a técnica que desde 1984 tem estado ligada a escolas públicas e privadas, “é formar cidadãos que não sejam obrigados a pôr em prática reformas, mas que sejam verdadeiros crentes nas reformas (ou nos méritos que estas têm)”. As universidades sauditas “mantêm um compromisso intocável com os valores islâmicos, mas precisamos de melhorar a qualidade dos nossos eruditos” – implícita alusão aos que fazem uma retrógrada interpretação dos textos religiosos.
Quem encorajou a abertura das primeiras escolas para meninas na Arábia Saudita foi Iffat al-Thunayan, a terceira e favorita mulher do rei Faisal, em 1956. Enfrentou tribos e imãs para introduzir uma educação secular que não fosse apenas a das madrassas (seminários islâmicos). Em 1963, Faisal chegou a mobilizar as forças de segurança para reprimir uma revolta de beduínos que recusavam enviar as filhas às aulas. Hoje, diz Norah Al Fayez, “há 12 mil escolas só para raparigas e o número de alunas ultrapassa os 2,5 milhões”.
Segundo a UNESCO, são mulheres 70 por cento dos alunos inscritos nas universidades sauditas, 56 por cento dos licenciados e 40 por cento dos que concluem o doutoramento. No mercado de trabalho, porém, elas representam apenas 5 por cento da força activa – a mais baixa taxa em todo o mundo.
Wajeha al-Huwaidar, a mais loquaz das fundadoras da Associação para a Protecção e Defesa dos Direitos das Mulheres na Arábia Saudita, relata ao PÚBLICO, por telefone, que “as mulheres são encorajadas a estudar nas universidades sauditas para serem médicas, enfermeiras, professoras e até banqueiras, mas se quiserem ser engenheiras, geólogas, arqueólogas ou jornalistas terão de se formar no estrangeiro”. Quando regressam, “terão dificuldades em encontrar emprego, com raras excepções na indústria do petróleo”, de que o reino é o maior produtor mundial. “Todo o sistema está concebido para perpetuar a segregação. Cerca de 90 por cento dos empregos estão reservados aos homens – porque eles têm medo das capacidades das mulheres. Os homens sauditas são mimados. Sem competição, não precisam de se esforçar para realizar sonhos.”

Revogar a lei do guardião
A activista que, desde 1990, lidera a campanha para que as mulheres possam conduzir (seja automóveis ou bicicletas) no único país do mundo onde estão proibidas de o fazer saudou a nomeação de Norah Al Fayez como “uma coisa boa”, motivada pela tomada de consciência de que “a Arábia Saudita já não é vista apenas como a terra do petróleo mas também de terroristas”.
No entanto, ressalva Wajeha, “fazer parte do governo não significa que Norah venha a ter margem de manobra para grandes mudanças”. E uma das mudanças mais prementes “é revogar a lei do mahram ou guardião masculino que nos retira o controlo da nossa vida. Não temos qualquer poder de decisão, sobre estudos, trabalho, casamento, sair de casa ou viajar, nem sequer sobre tratamentos médicos, sem a aprovação de pai, irmão, marido, filho.”
“É um paradoxo que, sob o pretexto de não haver mistura entre homens e mulheres, não podermos guiar mas sermos forçadas a contratar estranhos para motoristas”, lastima-se Wajeha, 47 anos, divorciada e mãe de dois jovens (os seus tutores). “Outra aberração é só os homens terem autorização para vender lingerie [muitos risos]. A nossa luta é pela mudança das leis, incluindo a que permite o casamento de meninas de 8 ou 9 anos.”
Wajeha não desvaloriza o decreto de Abdullah – o monarca que ascendeu ao trono em 2005 e em quem deposita “grandes esperanças” desde que era príncipe herdeiro. As pessoas escolhidas para o governo, entre eles, os novos ministros da Saúde, um cirurgião especialista em separar gémeos siameses, e o da Educação, príncipe Faisal bin Abdullah, cunhado do soberano, “são moderados que têm convivido com outras culturas e trouxeram novas ideias”, sublinhou.

Uma nação, uma família
Isso não significa, porém, que Norah Al Fayez vá ter uma relação de trabalho com Faisal como se vivesse no Utah, onde concluiu um mestrado em técnicas de educação na universidade estadual, em 1982, ou em Oxford, Bruxelas e Amesterdão, onde tem participado em palestras e seminários. Se quiser falar com o príncipe ou com subordinados masculinos será – disse ela ao jornal "Al Watan", “naturalmente, através de um circuito fechado de televisão”.
A experiência de ter ido para os EUA, logo após o casamento com o engenheiro Suleiman Al Suwlai e a licenciatura em Sociologia numa universidade de Riad, “foi um marco na carreira”, realça Norah Al Fayez. “Aprendi com os livros, com os amigos e com os professores que a procura do saber é uma viagem de uma vida. Desde o primeiro trabalho na função pública, nunca mais deixei de desenvolver as minhas capacidades. Ao seguir a via do autoconhecimento, contribuo para a prosperidade do meu país”.
E qual o impacto das suas frequentes viagens pela Europa? “Tive a oportunidade de interagir e comunicar com pessoas de culturas diferentes. Apresentei-me como mensageira das mulheres sauditas, e mostrei que a nossa posição e estatuto têm sido muitas vezes denegridos por estereótipos negativos. Também aprendi a não olhar para as outras culturas a preto e branco, mas como um arco-íris.”
Sair do país, ao contrário do que acontece com a maioria das compatriotas, não parece ser um obstáculo para Norah. “A minha família adaptou-se ao meu estilo de vida. Aprendi a gerir o tempo, e acho que é possível construir uma grande carreira e manter um extraordinário equilíbrio em casa. O sucesso não depende das circunstâncias. Requer devoção, disciplina e definição de prioridades profissionais. Começo o dia às 7h30, no meu gabinete. Às 14h30, almoço com a família e, as horas restantes, dedico-as a reuniões de trabalho ou a instituições de caridade a que estou ligada.”
“Tenho três filhos”, prossegue. “O mais velho, Bader, licenciou-se em marketing; o segundo, Shadi, é engenheiro aeronáutico; o terceiro, Mohammad, estuda Informática na América. Tenho duas filhas: Sarah está no 11º ano e Mashael está no 10º. Partilho com eles as minhas ambições. Recentemente, fui abençoada com a chegada de dois netos.”
Norah Al Fayez nasceu, em 1955, numa pequena vila nas proximidades de Riad, num lar de classe média. “Não tenho qualquer relação com a família real”, esclarece, desfazendo rumores a esse respeito. “Mas tenho orgulho em pertencer a esta amada nação onde todos os sauditas são uma família.”

Toby C. Jones e Eman Al Nafjan explicam o que significa o decreto real do Dia dos Namorados

Kommentare

  1. Não sabia que a geologia era algo tão perigoso na formação de uma mulher árabe para só se poder formar no estrangeiro nesta área... será porque a nossa principal ferramenta é um martelo e tal poder ser considerado uma arma? ;-)

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