Hoje chega às bancas o número 1000 do meu jornal preferido: Jornal de Letras, Artes e Ideias

Quando José Carlos Vasconcelos criou o JL, Assis Pacheco, primeiro chefe de redacção, deu-lhe seis meses de vida. Hoje chega às bancas a milésima edição, que inclui testemunhos de dezenas de autores, alguns dos quais já colaboravam no primeiro número, lançado há quase 30 anos. O percurso de um jornal que, na sua especialidade, quis sempre ser generalista e acessível. Por Luís Miguel Queirós no
Público.

No início dos anos 80, os suplementos literários dos jornais portugueses, cuja importância fora determinante até ao 25 de Abril de 1974, ou tinham acabado ou estavam reduzidos a folhas mais ou menos anódinas. E não havia uma revista de livros dirigida a um público amplo, no estilo da Lire francesa. Foi neste contexto que José Carlos Vasconcelos decidiu criar o seu Jornal de Letras, Artes e Ideias, ao qual bem pode chamar seu, já que não só o idealizou e lançou, mas também o dirige há quase 30 anos, desde o número 1, publicado a 3 de Março de 1981, até este comemorativo número 1000, que hoje chega às bancas.
Ninguém acreditava muito no projecto, a começar por aquele que se tornaria o primeiro chefe de redacção do JL: o jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco. "Não quis ser director e só aceitou chefiar a redacção porque estava convencido de que aquilo não durava mais de seis meses", diz Vasconcelos.
Se o JL acabou mesmo por avançar, foi porque não era fácil, na época, impedir José Carlos Vasconcelos de levar por diante um projecto no qual acreditasse. Era o director editorial da cooperativa Projornal, além de dirigir O Jornal, que, em vendas, acabara de ultrapassar o Expresso. E os vários produtos editoriais que já então lançara - o Sete, o Jornal de Educação, a revista História - tinham todos vingado.
Além de Assis Pacheco, a primeira equipa do JL contou com Augusto Abelaira e Eduardo Prado Coelho - muitas das recensões de livros, não assinadas, nos números iniciais, foram escritas por um ou por outro - e ainda com o pintor João Abel Manta. Vasconcelos realça o papel decisivo de Prado Coelho - "Tínhamos críticos muito bons para todas as áreas, e foi ele que os levou para o JL" -, mas também não esquece o contributo de Manta. De facto, quem folhear os primeiros números, só pode espantar-se com a dimensão e qualidade do seu trabalho: não só desenhou capas originais, como, em cada edição, colaborava ainda com uma série de retratos de escritores.
Cultura para todos
Assumidamente pensado para um público potencialmente vasto, com as opções editoriais que isso implica, o JL nunca suscitou essa admiração entusiasmada que outros projectos mais idiossincráticos e vinculativos podem suscitar. No entanto, há que reconhecer que dura há quase 30 anos numa estrita fidelidade ao que, desde o primeiro número, se propôs ser. No editorial do n.º 1, Vasconcelos explica que "O JL aspira a fazer jornalismo, e bom jornalismo especializado, na área a que se dedica." Ainda hoje, com a progressiva diminuição do espaço dedicado ao noticiário cultural na imprensa generalista, uma das mais-valias do JL é a de dar informação que os leitores não encontram noutros locais. E isto era ainda mais verdade quando não existia a alternativa da Internet.
Nesse mesmo editorial, o director lança um aviso à navegação - "Recusamos (...) os códigos das linguagens cifradas e os exercícios herméticos para pretensos iluminados" - e justifica o subtítulo de "Jornal de Letras, Artes e Ideias", esclarecendo que "se quer dar atenção" não apenas à literatura e às várias disciplinas da criação artística, mas também a temas de urbanismo, ecologia, antropologia, história, psicologia e política.
Este texto resume, no essencial, o que o JL tem sido até hoje, apesar de ter mudado duas vezes de mãos, primeiro com a entrada de um grupo suíço no capital da então Edipresse - ainda tentaram converter o JL em revista, mas Vasconcelos persuadiu-os a desistir da ideia - e, depois, com a passagem para a Impresa de Pinto Balsemão. Também a periodicidade se foi alterando: nasceu como quinzenário, tornou-se semanário em 1983, e voltou a ser quinzenal em 1994.
O jornal não tem tido vida fácil e, recentemente, chegou mesmo a estar em cima da mesa o seu eventual encerramento, cenário para já afastado. Com uma equipa reduzida - o trabalho de redacção é assegurado por cinco pessoas - e vendendo hoje cerca de 12 mil exemplares, o que tem complicado as contas é, sobretudo, a quebra de publicidade.
Número 1 vendeu 30 mil
Na verdade, o JL até vende mais do que o próprio José Carlos Vasconcelos, apesar do seu optimismo, acreditava que pudesse vender quando o lançou, há quase 29 anos. As expectativas andavam pelos oito mil exemplares. Prevendo a natural curiosidade que o número inaugural iria despertar, arriscou-se uma tiragem de 20 mil. Esgotou-se num ápice e foi preciso fazer uma reimpressão de mais 10 mil exemplares, que também desapareceu. E, durante bastante tempo, as vendas andaram ligeiramente acima dos 20 mil.
Um sucesso para o qual contribuiu, e ainda contribui, a implantação do jornal nos restantes países de expressão portuguesa, e em particular no Brasil. A atenção ao espaço da lusofonia foi, desde o início, um dos cavalos de batalha de Vasconcelos, que lembra que o JL esteve mesmo envolvido na organização da primeira conferência luso-afro-brasileira para a criação do que veio a ser a CPLP.
Apesar de o jornal nunca ter alterado significativamente a sua linha editorial, rever os primeiros números provoca um sentimento de nostalgia. É difícil não reconhecer que o JL era melhor, e a diferença não se explica apenas pela natural vivacidade de um projecto que dava os primeiros passos. O segredo estava, sobretudo, numa notável equipa de colaboradores regulares.
Basta passar os olhos pelo primeiro número - e os imediatamente seguintes mantêm o mesmo nível editorial e gráfico - para se ficar com uma ideia. Desde logo, a insólita e nocturna capa de João Abel Manta: um grande "1" em pedra a erguer-se de um conjunto de rochas junto à praia, com dois minúsculos personagens a esgrimir no seu topo, um motivo que o pintor recuperou para a capa deste número 1000. Depois, os textos.
A abrir, uma original divagação de Agustina sobre Dostoievski, à qual se segue uma magnífica entrevista de Assis Pacheco a José Cardoso Pires. Francisco Bélard faz o balanço do novo cinema português e Prado Coelho aborda a cinematografia húngara. Eduardo Lourenço, presença ainda hoje assídua no jornal, narra o seu encontro com Jorge de Sena, do qual são publicados três poemas inéditos. Abelaira inaugura a sua coluna, Ao Pé das Letras, confessando a sua incomodidade em ter de escrever sobre Tolstoi ou Mozart, quando os nomes que "desejam sair" da sua caneta são os de Balsemão, Soares e Cunhal. David Mourão-Ferreira traduz e comenta um clássico da poesia alemã. Alexandre Pinheiro Torres e Nuno Bragança assinam crónicas. E vale ainda a pena recordar a estreia de José Sesinando, alter ego de José Palla e Carmo, cujos textos bem mereciam ser reeditados. Neste número 1, escreve sobre músicos. A dado passo, brinda-nos com esta pérola de humor absurdo: "Quanto a Schubert, chega a haver dúvidas sobre a sua verdadeira identidade. Presume-se, no entanto, que ele fosse uma sua tia, o que era frequente naquela época."
De crítica a administradora
Além de vários outros artigos de fundo e notícias , o jornal reserva um bom número de páginas aos seus críticos. Manuel Maria Carrilho comenta um livro de José Gil e Paula Morão escreve sobre várias edições recentes. Tinham ambos 30 anos. O primeiro veio a ser ministro da Cultura, a segunda preside à Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas. No cinema, Guilherme Ismael, que morreu precocemente, e João Mário Grilo tratam, respectivamente, de Resnais e Godard. Sílvia Chicó divulga a obra do então artista emergente Gerardo Burmester. A música está a cargo de João de Freitas Branco. A mais nova do grupo, com vinte e poucos anos, é a responsável pela crítica de teatro, que, logo no primeiro número, zurze violentamente na encenação de O Judeu que Rogério Paulo mostrava no Teatro Nacional D. Maria II. O texto é assinado por Maria João Brilhante, actual presidente da administração do mesmo D. Maria II.
No Porto, o JL tinha Manuel António Pina, que, logo no quarto número, escreve cinco páginas sobre Siza Vieira, que começava já a ser admirado lá fora, mas a quem os jornais portugueses ainda não tinham dado qualquer atenção.
Estes e muitos outros colaboradores regulares, desde os mais antigos, como Saramago, Ramos Rosa, Urbano Tavares Rodrigues, Eugénio Lisboa, Júlio Pomar, Maria Velho da Costa ou Mário de Carvalho, para referir apenas alguns, até colunistas mais recentes, como José Luís Peixoto, escreveram expressamente para a milésima edição do JL. José Carlos Vasconcelos conseguiu ainda inéditos de alguns dos que já morreram, designadamente de Mourão-Ferreira, Sena e Vergílio Ferreira, e recuperou textos de muitos outros: Abelaira, António José Saraiva, Cardoso Pires, Prado Coelho, Assis Pacheco, João de Freitas Lobo, José Sesinando ou Nuno Bragança.
No editorial que escreveu para este número especial, o director não se esqueceu dos muitos jornalistas que passaram pelo JL, e que em muitos casos ali começaram. Alguns são hoje nomes bem conhecidos, como Clara Ferreira Alves, verbalmente contratada por Vasconcelos numas comemorações do 10 de Junho em Macau, que esta cobria como estagiária do Correio da Manhã, Tereza Coelho, que morreu há dias, com apenas 49 anos, Francisco José Viegas, Inês Pedrosa, Clara Pinto Correia, Carlos Vaz Marques, ou ainda o líder dos Gato Fedorento, Ricardo Araújo Pereira. E, claro, o veterano da redacção do JL, Rodrigues da Silva, homenageado no número 999, que já não viveu para ver esta milésima edição.
Alguns dos colaboradores
Fernando Assis Pacheco
Eduardo Prado Coelho
José Saramago
Eduardo Lourenço
David Mourão-Ferreira
Maria Velho da Costa
Vasco Graça Moura
João Abel Manta
Jorge de Sena
Agustina Bessa Luís

Kommentare

  1. Xi, e eu que me esqueci de comprar. Bom, a ver se amanhã ainda o encontro...

    É que já tinham anunciado o número, que vem com um livro grátis e tudo, pensei em comprar e varreu-se-me da ideia! Afinal a agenda está lá para quê??? ;)

    Beijocas e obrigada pelo lembrete!

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  2. Olá Teresa!

    A PI não perdoa e eu esqueci-me hoje de o procurar. Irei tentar encontrá-lo amanhã.

    Com que então outro desafio???

    Estou com vontade de o agarrar, mas só quando tiver um pouquinho mais de tempo.
    Uma beijoca de Boa Noite

    Até Amanhã
    Licas (Isabel)

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  3. Hallo! Claro que agarro o desafio! =)
    Beijinhos!

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  4. Se não te importas fiz um print para guardar este teu post tão completo está - o JL foi durante muitos anos o meu jornal de cabeceira - depois quando juntaram o Expresso - onde eu estava - com os outros jornais e revistas do grupo fiquei um pouco desiludido com alguns favorecimentos - eu dava imensas ideias e eles nunca aproveitavam, acho que aproveitaram uma vez, de maneira que deixei de comprar - mas agora vou comprar este número, devemos sempre comprar o 1.º número e os 1000, etc.

    Muitos beijinhos!!!

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  5. Uma postagem de alto nível esta! Bj


    Ich bin
    der Investieren
    ICH BIN DAS MEER
    Bolero
    bin Ego
    bin Foto
    ich unsterblicher
    *tossan*

    Talvez não faça sentido a tradução. Bj

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  6. Boa Noite Teresa

    Cheguei agora do cinema, uma comédia do Woody Allen, um chá quente e vou satisfeita dormir. Hoje foi um dia improdutivo, como gosto destes dias. Também não comprei o jornal, estou de férias. Agora vem o ciclo dos filmes e dois dedos de conversa.

    Beijinhos
    Isabel

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