Profundo, demasiado profundo

Nem toda a conversa sobre profundidades ultrapassa um nível rasteiro, mas há conversas e conversas, como há países e países. Eça que o diga.

Expresso _ Luís M. Faria

"Ele tem profundidades", escrevia Eça de Queiroz sobre certo medíocre cuja característica mais notória - cuja técnica, digamos - era deixar-se ficar calado quando todos falavam. O silêncio sempre foi uma maneira fácil de parecer profundo. Um dos filósofos mais complexos do século XX, Ludwig Wittgenstein, recomendava-o expressamente num aforismo célebre ("Sobre aquilo de que não se pode falar, devemos ficar calados") que tem a curiosidade de não parecer especialmente profundo.
À primeira vista. No caso de Eça, a frase tinha um sentido irónico. A ironia era o seu modo natural de expressão, encaixando bem no conceito de um país não feito para levar a sério, embora repleto de gente sisuda. Convém notar que o escritor se incluía na crítica, sugerindo que a única coisa que lhe faltava para ser um romancista realmente grande não era a técnica, mas um indefinível je ne sais quoi espiritual : "Não me falta o processo: tenho-o, superior a Balzac, a Zola, e tutti quanti. Falta qualquer coisinha dentro: a pequena vibração cerebral; sou uma irremissível besta!". Por outras palavras, faltava-lhe não ser português.
A associação automática de certas nações à profundidade (e a correspondente exclusão de outras) é antiga. Os alemães são profundos, os italianos não. Dos franceses é melhor nem falar, apesar de Zola e Balzac. Quanto aos portugueses, enfim, são complicados. Não que faltem profundidades na nossa língua. As 'causas profundas' inquietam-nos sempre, o 'ódio profundo' pode seduzir-nos, e quando lamentamos algo costumamos fazê-lo 'profundamente'. Mas como se mede exactamente a profundidade? Se for no mar, há padrões objectivos. Dez quilómetros abaixo da superfície, as fossas marianas são indiscutivelmente profundas. Mesmo um corte profundo é algo em relação ao qual há consenso; meio centímetro de lâmina dentro da pele, e já está. Tratando-se da alma, é difícil definir.

Romantismo e profundezas
As ´profundidades insuspeitas' podem ser bastante rasas, mas há de facto profundidade em toda a gente; no mínimo, vá lá, um terror obscuro. Nem era precisa a psicanálise, ou antes dela o romantismo, com a sua hipostasia do eu e a sua 'cartografia da alma', para nos ensinar isso. Encontramos a ideia no Velho Testamento, algures entre o pecado original e o ranger de dentes: "Das profundezas clamo a ti, ó Senhor", diz o salmo 130. "Estejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas".
Conhecido abreviadamente por De profundis, este salmo foi musicado muitas vezes, nunca tão profundamente como por Bach e compatriotas.
"Aus der Tiefe ruf Ich, Herr", de facto, tem outro som. E não terá sido por acaso que foi um escritor de língua alemã, Rainer Maria Rilke, a decretar a incompatibilidade entre ironia e a 'orla da grandeza'. A falta de humor, como sabemos, teria efeitos trágicos na Europa central, embora não por culpa dos poetas.
Rilke surge no fim de uma linha longa que inclui nomes como Holderlin e Novalis ("Estamos perto de acordar quando sonhamos que sonhamos"), cujo único defeito óbvio era parecerem não conseguir escrever nada que não fosse profundo. Até uma expressão bizarra como 'profundezas do ser' acabou por se impôr, fazendo recordar aquele aforismo francês sobre o plural que era bem singular.
A avalanche de profundezas gerou uma contra-reacção, simbolizada no irlandês Oscar Wilde. "Só as pessoas superficiais não julgam pelas aparências", dizia ele. "O mistério do mundo é o visível, não o invisível". Essa convicção de que ideias profundas se exprimiam em coisas superficiais e de que só as pessoas superficiais falavam de coisas profundas levou-o a escrever peças de teatro tão aparentemente fúteis como certeiras sobre a alta sociedade do seu tempo. Não deixa de ser irónico que a sua última obra importante de prosa fosse um longo lamento epistolar intitulado De Profundis, onde as piadas são notoriamente escassas.

Antes do fundo
A profundidade nunca saiu de moda. Entre o ´peixe de águas profundas' que era Jaime Gama (segundo Mário Soares) e as 'análises em profundidade' regularmente produzidas por entidades de mérito, o profundo mantém-se desejável, ou pelo menos bem cotado. Na verdade, a paciência por vezes cede, e cada vez mais se ouve a frase 'Isso é demasiado profundo para mim', a propósito de tudo e de nada. Em parte é uma questão de timing. Como a psicanálise e os penhoristas, a profundidade tende a prosperar em tempos de crise; a superficialidade, como as hipotecas, nos outros. Mas por vezes é ao contrário.
Já agora, refira-se que profundo vem do latim (pró+fundo), significando aquilo que se encontra antes do fundo. Imediatamente antes e quase junto. Lá onde não entra a ironia.

Kommentare

  1. Sem dúvida nenhuma! Quem não tem algo de construtivo e interessante para dizer, faça o favor de se manter calado e reduzir-se à sua insignificância.
    Por isso é que não comento muito dos posts que deixas aqui... Sinto-me tão pequena e ignorante que é preferível manter-me calada do que comenter um "faux-pas" imperdoável... HEHE

    Um beijo e abraço da tua, sempre tua, kleiner fuchs

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  2. You are fishing for compliments!!!

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  3. às vezes o silêncio é realmente importante. mas compartilhar tb. acho que o mais difícil é dosar os dois. saber falar ou saber calar. espero que melhore. e se está deprimida, é realmente aconselhável não ver ensaio sobre a cegueira. eu fiquei mal quando li o livro, ver o filme tem que ser em um dia que pode elaborar melhor. beijos, pedrita

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